quinta-feira, 23 de junho de 2011

sinais vermelhos ultrapassadoS

sismógrafos pararam, não registraram
etnólogos lamentaram, não encontraram
e passou como fosse pedestre sem dúvidas
faixas e feixes de extrema negritude turvaram a dança
lágrimas sopradas chapisco em mãos sobre-impostas
era monstro pluridáctilo inesgotável

arrancou-me a sopa, por pouco o sopro
perturbou o lago aparente de distonia
e não havia quem acudisse com boa fiança;
era o princípio da fusão lancinante
da desilusão do afeto escarafunchado
e foi pra longe meu juízo;
não faz sentido, não faz um fio de ventura

é insanidade de mármore pálido e inerte
é reticência intermitente
é toda sorte de abalo neural
e nunca acena sem me arrancar um uivo
me dá uma folga de mim, bicho-perturbação!
me deixa esparramado nos braços da tarde!
me espera no fim do trilho!
que prometo te levar bibelôs cheios de lustro,
prometo meus dentes cheios de sentido
prometo ainda meus ombros dissimulados

mas vai te embora como se farol aberto!
atrapalhar os maus condutores
ludibriar os infiéis
admirar vidas positivistas
esquece a minha, que só tem essa chance
que não sabe onde pisa e nem a quem toca
prometo-te uma última oferta:

enviar minh'alma à mais equidistante posta restante.

quinta-feira, 24 de março de 2011

provavelmente vocÊ

provavelmente
que nasceu de pernas bambas
e não atinava em nada que cheirasse a dor
experimentou os inéditos óxidos ambientes

provavelmente
nas dobras de tuas sandálias
a malícia que a cor nunca denunciará
porque cor não pega nem solta

provavelmente
os soluços pronunciados na cama fria
pontuais como os desejos verossímeis
e ninguém soube de uma só lágrima

provavelmente
nem tampouco o maniqueísmo dos inocentes
pra aliviar o meu segredo umbilista
e pobre de mim que só sei de mim

provavelmente
amanhã que é dia de feira
e não se pode perder um só suspiro teu
sob pena de ganharmos um vírus letal

provavelmente
pela calçada amarelada de preguiça
esperando uma música da Gal
nunca se sabe quanto tempo leva

provavelmente
com quem uma vez mais falarei
de quem uma vez mais lembrarei
por quem uma vez mais viverei

provavelmente
ainda pior do que um esquecimento
a ferida miasmática da aporia
e quem saberá do meu papel?

provalvemente
escrevo pedindo perdão ao retrato
pelo dito, pelo não e pelo talvez
se não sei de onde vem a raiva

provavelmente
tudo me cheira a loucura
até tu, caminho bom de se deitar!
que me trouxe pêlos melaninosos

provavelmente
não sobrará muito de mim
e nós brincando de não ser nada
- me leva pra passear no teatro!

provavelmente
seja o começo do fim da fruição
e agora me penduro no invisível
flamulando nalgum frande

provavelmentevocê.










{ dedidado ao menino Quixote (que me partiu em três) }

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

vende-sE


vem de si
uma esperança de que nenhum movimento
seja mais brusco
que o movimento do meu braço
indo ao peito conferir a marola
do coração
em suspiros de um choro emergencial


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

imagimáriO

se há algo mais absurdo do que a própria idéia de brasilidade, é a personagem modernista esculpida por Mário de Andrade. e de tão absurda, simbólica; e de tão simbólica, refletida.

a preguiça, cujo hino literário foi arquitetado em 7 dias¹ (sendo um de ócio oficial), está rapsodicamente (por ser fruto do improviso folclórico) inscrita na obra modernista, porque foi naquelas décadas de 20 e 30 que o desenvolvimentismo brasileiro buscou modelos europeus, para construir o ideário nacional. os mais avisados sabem que Mário não escondia seu afeto pela "cidade maravilhosa", tendo retirado desse afeto as referências para o caráter brasileiro que se pretendia delinear sob a luz das influências vanguardistas. de tão afeito ao espírito despojado do povo tupiniquim, o escritor ousou desenhar uma personagem que encarnasse o famigerado dualismo trabalho-ócio. sugeriu o desajuste entre sociedade e homem folclórico, impetrou cuidado ao caracterizar o ofício de escritor (ou homem cultural) como situação mecânica, e até pregou que o comportamento sublinhado pela obra em questão era tipia de terrenos com climas como os daqui.

Mário não foi nem será o único a vacilar, quando o pleito é admitir os contornos desta nação. se ele não foi capaz de resistir à tentação da atividade arbitrária e avulsa, como poderíamos nós, no pós-revolução tecnológica, e contentes (e pouco conscientes) do zum-zum-zum da Semana de Arte, admitir sermos corpos dispostos à empreitada do projeto e da execução? não é com a Gal apelidando os bahianos de preguiçosos, que estes virão à forra (mesmo que a tropicalista seja tão bahiana quanto carioca). Mais adiante, o próprio Mário reconheceu a perdição que era aquela terra boêmia - "O Rio pra mim é um sonho e eu quase que me envergonho de você ter me obrigado a confessar isso”² -, reiterando a particular propensão ao erro de imaginar que o homem pode ser cindido entre a capacidade de produção intelectual e o envolvimento com a laboração planejada. num momento seguinte, o autor redireciona seu trabalho para o engajamento político-cultural nacionalista, pautado no chamamento à participação e à influência do coletivo.

é preciso tentar imaginar a figura do brasileiro como uma personagem instantânea, tradicionalmente ligada à idéia de futurismo (movimento que aliás norteou a atuação dos primeiros modernistas), em que não se pode perder o momento sublime, o mais recém-pós-pós, sob pena de desligar-se da mais gloriosa plenitude. o brasileiro é uma entidade (assim tratada como uma personagem andradina) sem técnica que lhe represente, exceto a de apostar nos feriados e nos jogos do bicho. de tão pós-moderna, paradoxalmente, esta entidade é perdida no que não tem sido, por preguiça de se satisfazer...


1 - Macunaíma foi escrita em uma semana, período em que Mário esteve "descansando" em Araraquara.
2- Em carta a Drummond, refletindo Macunaíma.


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

a rota do indivíduO

Essencialmente hoje, são dispensáveis quaisquer qualidades de invenção poética, devem reinar as obras-primas elaboradas pelo mestre-mor da música negra brasileira, diga-se Djavan. Foi este o espírito que mais me incitou a imaginação das coisas indizíveis. Cada pétala cadente da saudação que este homem fez aos deuses ultramarinos foi soprada aos polos mais remotos. E o som que se projeta é similar ao pulso firme de um coração aflito pelas dores que já experimentou e se vêem espelhadas na cor do abismo dos olhos de quem sente vontade. Há um caminho riscado na vereda dos sonhos semi-possíveis, e não foi por falta de aviso: é trilha perigosa a cauda do cometa do conhecimento. Que os nossos desejos apareçam como um prego que se bate na parede, ou se pendura o quadro da vida lá fora, ou fica o buraco sem sentido. Saudações aos indivíduos que carregam os sonhos nos trilhos, sacolejam e não descarrilham. Fica a homenagem do mestre.

Mera luz que invade a tarde cinzenta
E algumas folhas deitam sobre a estrada
O frio é o agasalho que esquenta
O coração gelado quando venta
Movendo a água abandonada
Restos de sonhos sobre um novo dia
Amores nos vagões, vagões nos trilhos
Parece que quem parte é a ferrovia
Que mesmo não te vendo te vigia
Como mãe, como mãe que dorme olhando os filhos
Com os olhos na estrada
E no mistério solitário da penugem
Vê-se a vida correndo, parada
Como se não existisse chegada
na tarde distante, ferrugem ou nada.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

sossegO (homenagem póstuma)

Eu sempre quis saber quando vc pararia de esnobar o próprio discurso; talvez porque eu temesse que, não dando afirmação à sua própria fala, vc também não recebesse bem a alheia. A menos que vc se torne um diretor sarcástico e metaforizador das palavras (ou imagens, no seu caso), vc precisa tomar mais cuidado com as antíteses aplicadas na sua fala; nem todo mundo recebe e/ou percebe eficientemente jogos de palavras ou permutas. Temos provas diárias, nas notícias da Tv, que um sintagma mal construído, e logo dispara um festival de "eu fui mal interpretado" ou "não foi o que eu quis dizer". Não que eu seja exemplo, mas é preciso, substancialmente na área das comunicações, ter certo talento na área da linguagem. Pelo muito pouco que conversamos, sei que vc tem um generoso poder de verbalização, mas eu ficaria mais feliz se sua vaidade fosse maior: escreva como quem está dando um presente; quanto mais mal do presente vc falar, mais desconfortável ficará o destinatário, para não dizer desmerecedor.

Mas já que vc perguntou, não estou muito bem não. E agora é uma dor diferente; porque antes eu oferecia por demais minha miserável amizade e/ou companhia a Vossa Senhoria, e Vossa Senhoria sempre senhor de sua indiferença; agora que ainda o preciso, embora com menos gula, Vossa Ascendência teima em desfazer as interseções; se bem que "para quem tem preguiça de escrever", e sendo este o quase exclusivo meio de comunicação, qualquer lugar seria "muito bom". A propósito, percebestes o sibilar dos sons dessas sentenças??? É quase como estou pensando; porque o pensamento também faz sons... Mas agora o som e o tom são sutis e silenciosos. Nada de raiva, ira ou tensão. Saudade, sim.

Só quero a sua saúde e seu sucesso, e seu sossego. O que se pode esperar de um ser com tantos ésses no nome.

Boa Semana!

******** ******
ps: antes, eu recomendava que escrevesse quando pudesse e quisesse, mas se já há preguiça, escreve quando puder e conseguir.



-----Mensagem original-----

De: **** ******* [mailto:jeffilmes@gmail.com]
Enviada em: segunda-feira, 25 de junho de 2007 19:42
Para: sr.beltrano@terra.com.br
Assunto: tá vivo?

que pergunta besta?
eu estou vivo, acho que a agente deve se encontrar no Orkut!
aparece por lá, pra quem tem preguiça de escrever é muito bom!
estou muito bem e gostaria que vc também tivesse muito bem!
muito bem!
um abraço!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

o rabo entre as pernaS



Segundo Aristóteles, a comédia é imitação de uma ação possível (que hoje chamaríamos de ação imaginária); juntamente com as outras modalidades literárias, cuida daquilo que não ocorreu de fato mas poderia ter acontecido, estando mais perto das coisas universais, ao contrário da história e das demais ciências humanas, que tratariam do que realmente aconteceu e estão mais presas às coisas particulares. O autor também classificou a comédia como "imitação de homens inferiores... mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo."

Respeitada a indiferença perturbadora de Machado, peço desculpas ao finado pelo simulacro barato e, ao mesmo tempo, promovo a homenagem. Joaquinzim que vá tomar satisfações com o Ari...


A Borboleta Preta (Capítulo 31 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis)

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite; e o gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, uma espécie de ironia mefistofélica, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão - uma das mais profundas que se tem feito desde a invenção das borboletas - me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas". A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e ela beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru.

Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas… Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.


O Labigó Zombador (Capítulo Nenhum - Memórias Postas Debaixo da Blusa - Senhor Beltrano)

No dia seguinte, como eu tivesse a custar-me para sair, entrou no meu banheiro um labigó, tão zombador como o outro, e muito menor do que ele. Lembrou-me o acidente da véspera, e chorei; saí logo a pensar na menina da Dona Raimundinha, nos olhos que pusera, e na graça que, apesar deles, soube provocar. O labigó, depois de escorregar muito fugindo de mim, cagou-me no pé. Xinguei-o, ele foi parar no ralo; e, porque eu o xingasse de novo, pulou dali e veio parar em cima de um velho penico de minha tia. Era acizentado como o dia. A batida louca com que, uma vez besta, começou a sacudir a cabeça, tinha um certo ar infeliz, que me atusigou muito. Dei de sobrancelhas, saí do banheiro; mas voltando lá, segundos depois, e achando-o ainda no mesmo balançar, senti o encher da bexiga, abri mão de um cacete, mijei-o e ele boiou.

Não morreu afogado, ainda balançava a cabeça e esticava as perninhas. Aproximei-me; tomei-o do penico da titia e fui pendurá-lo na chave do basculante. Era tarde; o infeliz perdera o rabo dentro do penico. Fiquei um pouco arrependido, inconformado.

- Também por que diacho não era um rato? disse com o bicho.

E esta provocação - uma das mais corajosas que se tem feito, desde o surgimento dos gatos - me aliviou do prejuízo, e me atrasou no antigo emprego. Deixei-me estar a xingar o recém-anuro, com alguma melodia, confesso. Imaginei que ele fugira do gato, apressado e por um triz. A tarde era quente. Veio para cá para dentro, afobado e besta, esquecendo as suas lagartices, sob o pretexto de uma morte súbita, que é sempre súbita, para todas as garras. Passa pela minha canela, pula e caga em meu dedo. Suponho que nunca teria usado um vaso; não sabia, portanto, o que era o vaso; arranhou redondas vezes as paredes do penico, e viu que estava de pé, que falava, gritava, xingava, ria, um idiota total. Então disse consigo: "Este é provavelmente o dono do gato". A idéia confundiu-o, indignou-o; mas o medo, que era quase instintivo, demonstrou-lhe que a melhor forma de perder o rabo era para o dono da casa, e cagou-me no pé. Quando xingado por mim, foi parar no ralo, viu dali o penico de minha tia, e não é impossível que imaginasse meia felicidade, sem saber, que gostava dali a tia do dono do gato, e saltou para conseguir refúgio.

Pois um golpe de mijada levantou a levedura. Não lhe salvou a cauda solta, nem o frege da cabeça, nem as asas dos insetos de outrora, contra uma mira de olho, dois palmos de distante e um alvo.

Vejam como é bom ser superior aos labigós! Porque, é justo dizê-lo, se ele fosse um rato, ou um preá, não teria mais seguro o rabo; não era impossível que eu o levantasse pela cabeça para recreio do gato. Não era. Esta última idéia entregou-o à maldição; cobri os dedos para não melar, derreei todo o pote e o anuro caiu longe de mim. Era tempo; lá vinham já os promíscuos gatunos... Não, volto à primeira idéia, penso que para ele era melhor ter nascido rato.