quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

imagimáriO

se há algo mais absurdo do que a própria idéia de brasilidade, é a personagem modernista esculpida por Mário de Andrade. e de tão absurda, simbólica; e de tão simbólica, refletida.

a preguiça, cujo hino literário foi arquitetado em 7 dias¹ (sendo um de ócio oficial), está rapsodicamente (por ser fruto do improviso folclórico) inscrita na obra modernista, porque foi naquelas décadas de 20 e 30 que o desenvolvimentismo brasileiro buscou modelos europeus, para construir o ideário nacional. os mais avisados sabem que Mário não escondia seu afeto pela "cidade maravilhosa", tendo retirado desse afeto as referências para o caráter brasileiro que se pretendia delinear sob a luz das influências vanguardistas. de tão afeito ao espírito despojado do povo tupiniquim, o escritor ousou desenhar uma personagem que encarnasse o famigerado dualismo trabalho-ócio. sugeriu o desajuste entre sociedade e homem folclórico, impetrou cuidado ao caracterizar o ofício de escritor (ou homem cultural) como situação mecânica, e até pregou que o comportamento sublinhado pela obra em questão era tipia de terrenos com climas como os daqui.

Mário não foi nem será o único a vacilar, quando o pleito é admitir os contornos desta nação. se ele não foi capaz de resistir à tentação da atividade arbitrária e avulsa, como poderíamos nós, no pós-revolução tecnológica, e contentes (e pouco conscientes) do zum-zum-zum da Semana de Arte, admitir sermos corpos dispostos à empreitada do projeto e da execução? não é com a Gal apelidando os bahianos de preguiçosos, que estes virão à forra (mesmo que a tropicalista seja tão bahiana quanto carioca). Mais adiante, o próprio Mário reconheceu a perdição que era aquela terra boêmia - "O Rio pra mim é um sonho e eu quase que me envergonho de você ter me obrigado a confessar isso”² -, reiterando a particular propensão ao erro de imaginar que o homem pode ser cindido entre a capacidade de produção intelectual e o envolvimento com a laboração planejada. num momento seguinte, o autor redireciona seu trabalho para o engajamento político-cultural nacionalista, pautado no chamamento à participação e à influência do coletivo.

é preciso tentar imaginar a figura do brasileiro como uma personagem instantânea, tradicionalmente ligada à idéia de futurismo (movimento que aliás norteou a atuação dos primeiros modernistas), em que não se pode perder o momento sublime, o mais recém-pós-pós, sob pena de desligar-se da mais gloriosa plenitude. o brasileiro é uma entidade (assim tratada como uma personagem andradina) sem técnica que lhe represente, exceto a de apostar nos feriados e nos jogos do bicho. de tão pós-moderna, paradoxalmente, esta entidade é perdida no que não tem sido, por preguiça de se satisfazer...


1 - Macunaíma foi escrita em uma semana, período em que Mário esteve "descansando" em Araraquara.
2- Em carta a Drummond, refletindo Macunaíma.


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