quinta-feira, 27 de agosto de 2009

severina idade

É de ser puxado pelo braço que tenho reclamado aos vizinhos mais severos. As manhãs de ventanias azuladas sopraram as peças íntimas deixadas para perfumarem os azulejos semipermeáveis. Permeiam quase toda a umidade, mas não isolam o banzo que sublima dos olhos de quem chora o flerte gasto numa tarde besta de sábado. É saudade dos ratos que vinham subjugar a natureza de qualquer gato desinteressado; falta do pirulito de sabor frutoso, que mais valia pelo grude que pela essência; ou sentimento dum furo na câmara de ar em que está acomodado o carinho de primo, que difere e assemelha a face que logo ficará exposta à catraca e aos pés apressados.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

idioma


Ontem mesmo, sentado num canto da cama, mirando uma tv que não conseguia me dizer uma só palavra de recarga, notei que meu pensamento flutua várias vezes entre uma idéia e outra quando isso é tudo que ele tem de mais importante para fazer. Lembrei dos índios, que recebiam fascinados a presença dissimulada do invasor branco, como se este fosse fruto cuja árvore a natureza esqueceu de revelar. A única informação que aqueles anfitriões poderiam elaborar a respeito dos seus penetras era que não eram gente de estilo simples, carecia ainda que estes últimos mostrassem que meia dúzia de naus encerradas de madeira pau-brasil não esgotavam sua cobiça para que se formasse um paradeiro mais ou menos determinante do perfil da raça de além-mar. Tendo em vista o exposto, retomando minha fala inicial, digo que a memória desse ocorrido não me é aleatória; que terão os selvagens achado daquela visão? Maravilhado-se com a descoberta de uma espécie, até então, mais rara que certas aves que só os visitavam em temporadas; ou assombrado-se com a possibilidade de aquilo tudo ser não mais que um distúrbio natural (gente descolorida em terras de sol potente), sinal dos deuses, sinal dos tempos? E daí por diante seguem outras dúvidas, visto que os nativos ainda ouviram muito falar de pau-brasil, cana-de-açúcar, missões, preciosas, extermínio, etc. Tocando novamente a idéia primeira, constato que o fruto da novidade não se processa em mim principalmente pela simples apresentação de um novo sujeito ou objeto, mas sim pelo conjunto de confrontos que apresento a esse inédito. É como se o novo falasse outra língua e eu estivesse buscando os cognatos. Alguns desses cognatos são falsos, mas eu sempre insisto em pensar que cair no erro de usá-los é o preço que se paga por ter de falar todas essas línguas e não falar nenhuma delas. Quantos falsos cognatos aqueles primevos genuínos americanos terão presenciado em lugar da verdadeira intenção? Quantas vezes tive eu de flexionar meu verbo mais à pronúncia do estrangeiro (novo)? E para que? Para saber com qual língua é mais fácil de agarrar o mundo. Assim, considero novidades palavras que inicialmente não compõem meu vocabulário, e que tenho de decidir se pertencem a esta ou aquela língua, porque desse bom entendimento surgirá meu bom equilíbrio no viver. Talvez por isso eu pense demais recluso a um canto da cama, vou selecionando as novidades, pondo aqui e ali, se a este ou àquele idioma pertencerem. Ainda é possível duvidar que existe uma língua universal? Eu acho que sim. Eu ainda duvido, duvido muito.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

do MMs ao SSs

Ao MM, pelo SS, foi feito um convite para ir lá em casa tomar licor de genipapo. Do convite, brotaram questões correlatas. Sentimos então a necessidade de desenvolver certas proposições paisagísticas; da necessidade vieram o desejo e a afronta. Questionado sobre uma personagem que o pôs com sua feição amantada de contente, ele revelou, sempre dizendo a ela própria, como um homem enfezado:


MM: Tu eras uma bailarina cega, deslizando soniferamente por imensos degraus de saudade – tuas mãos se acostumaram a deitar obscuras nas curvas do dia seco. O dia era seco, e seco também era teu silêncio...


SS: Qual planta foi cabresto para o feitio das edificações e de toda a mobília que estão assentadas em sua alma?


MM: Vi o gesto cansado que teus olhos turvos ofereceram ao vazio da sala. Pude ver teu desespero e teu ódio se afogarem num mar de gargalhadas calmas. Vi a ponte que se lançou quando tu abriste as cortinas novas, as pálpebras que remexiam na gaveta carente, o medo que te humilhou quando tuas costas clamaram pelo berço. Senti o gosto de madeira que tua língua jogou em meus ouvidos, a insegurança dos teus dedos tocando a terra virgem, o calado festival dos seios inundando o banheiro, já frio de sentidos.


SS: E o que dela vinha era vacilante?


MM: Tu não estavas morta e estais aqui agora, sustentando com fidelidade o fardo de ser o que sofre – e também o que se deleita. O gosto palpita, o queixo ignora a sensação serena de desabar sentada sem nada dizer. Tu estás inteira, mas inteira em parte, porque teus sonhos desembocam em caminhos tortuosos, porque teus braços tremem de insegurança, pois o calor recebe a flecha bruta e intolerante.


SS: Ouvem-se barulhos de caldos de um rio subterrâneo. São gemidos? São dela? Sabe?


MM: Sei. Alguma fantasia se esconde debaixo das tuas lindas sobrancelhas, tenho certeza que no leito que tu esperas caberá mais paixão que o suor dos teus ombros imunes. Vejo os tropeços e arranhões, mas é a doce sensação de andar com outros pés ao lado que te causam a maior saudade, e são as lágrimas que sempre querem merecer teu rosto... As coisas da tua sina são os mesmos batuques do meu atormento. Navegamos nas mesmas turbulentas águas, traçamos a mesma rota – e demos a caçoar do mapa. E eis que tudo se faria agora – presente, neste instante, em alguma direção: a natureza triunfante dos corpos se enfrentando em pleno dezembro. Deste choque corpulento gerou-se uma manhã branda e cristal, em que eras “uma pequena” a sorrir num vestido branco com girassóis dourados estampados e eu era um “cavaleiro andante” a desbravar mais um cômodo da casa.


SS: Existe alguma areia das desconstruções arranhando os vossos olhos?


MM: Teu sermão era pequeno e meu egoísmo grande – na brutalidade das diferenças o tempo constrói as nossas roupas. Abraçamos a mesma almofada colorida, pintamos com o mesmo pincel, só não demo-nos as mãos, pois estávamos ocupados em acariciar os mesmos calcanhares de outrem. Somos sujos e fiéis. Improváveis, cruéis e vulgares. E também somos o caldo explosivo e descompassado dos anos dourados. Qual será nossa resposta diante da fúria?


SS: Isso, MM, é vez de tuas interrogações; abre-te!


MM: Somos o que não fomos. O que seremos? A natureza me impressiona mais do que a beira da terceira margem. Quero descansar meus livros no teu colo... Tu me deixarias entrar descalço em teus cabelos?


Findo o genipapo, recolhemo-nos cada um à sua respectiva miséria. Ei, MM, obrigado pelo passeio.

Cheiro.