quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

o entregador de cartas


deixou-as cair no asfalto encardido e fervente
fraturou todas elas, desencaminhou-as
perderam-se não só as saudações
perderam-se as dívidas
e todas as confissões figurativas da linguagem para boi dormir...
(é tempo de não mais redigir)


* em honra do amigo-secreto Cizo

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

o silêncio (arnaldo antunes)

antes de existir computador existia tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
luz elétrica tevê computador
batedeira, liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito, esse tambor

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

impressão e expressão *

Os filmes de ficção tentam divertir os mais céticos com cenas em que duas personagens sempre discordam quanto à existência de seres ou atividades extraterrenas. É bem verdade que no filme alguém sempre acaba se dando mal por duvidar dos alertas, notadamente por serem absurdos demais, e os videntes, loucos. Mas o que seria o absurdo? E mais, o que seria a loucura? O que mais enlouquece, o que se vê ou que não se vê?

O que aconteceu com uma garota de Missouri (EUA) me faz acreditar que o que não se vê é bem mais perigoso que o tangível. Megan Meier contactou um perfil virtual, através de um site que funciona como uma rede social virtual, e desenvolveu uma amizade por este perfil chamado Josh. Este, durante mais de um mês, alimentou a amizade de Megan. Tempo suficiente para fazê-la acreditar que uma palavra amarga poderia estragar tudo, e foi o que ele fez, acabando com a amizade. Ao ser chamada de "cruel" por Josh, a garota de apenas 13 anos enforcou-se. O acordo não era a corda, aquele era virtual, esta não.

Dando o devido desconto pelo fato de que Megan sofria de DDA e depressão, é possível trazer à tona a análise de que há coisas que só tem explicação e confirmação nos próprios mistérios cerebrais. Se somos capazes de amar ou odiar quem nos dirije a palavra, não importando se o que nos separa são centímetros ou quilômetros, não é estranho que todos os sentimentos sejam forjados no calor (ou no frio) dos ventos e das palavras. A cortina que atrapalha a visão que temos uns dos outros é a mesma que se abre para que consigamos alcançar nossas mais egocêntricas aspirações. O referencial para o que chamamos de real ou ilusório é mera jogatina do social.

Lembremos os casos de adoção, de adoração e até os de adultério. Nos primeiros, os elos estão presos pela esperança de que o outro é parte desprendida e perdida do que escolhe: há um pedaço de mim no que a mim naturalmente não pertence. Na adoração, a visão do resto é restrita a um foco: eu preciso acreditar no que acredito porque este é o que melhor me define e me preenche. Já no adultério, é luta vencida tentar explicar ao corpo que ele é o dominado, não o dominador: devo "ser" com alguém, mas não sei nem quem sou nem como serei, e me perco.

Não há loucura maior do que acreditar que a loucura é produto do que está fora. A loucura é fruto da ilusão. A ilusão está no que imagino ver, ouvir, cheirar, gostar, sentir, imaginar. Se meu corpo é o que me identifica, e o que me identifica é repleto de absurdos, o limite entre a expressão e a impressão é também o meu limite. E só eu sei dele. Quem sente pode mentir para o que está fora, mas nunca para si mesmo.

*originalmente publicado em 01/12/07

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

chá verde

põe
sete gotas de poesia
na xícara de chá verde
dos teus dias travosos...