quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

alegoriA


entre uma sombra e outra do sol escaldante da vida lá fora, encontrei pernas dispostas a um passo maior e lábios úmidos de uma galáxia que nunca acabava de incitar o meu enleio. retorno ao vagão das minhas utopias e etiqueto carga por carga com o título: adimplência é uma arte, promessas não são sonhos, e felicidade mora em outra feliz cidade.

um brinde aos teus olhos orvalhados, menino Bravo! e avante...


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

passado de presentE


Sou um homem sem memória, portanto, um homem sem passado. É como se os fatos fossem quadros recém-roubados, nunca recuperados, somente com a idéia primeira despertada pelo contato; de sobra, nem mesmo o trauma da perda, só mesmo a propaganda do roubo. Outrora, valiam um pedaço do céu e uma fração da terra, agora, passou.

Pelas minhas contas, o ano durou bem mais que três centenas e meia de dias, durou a eternidade de uma dor de cabeça crônica, de um esquecer de si admirando uma paisagem desinteressante pelo quadrante da janela do coletivo, de uma viagem entre o veio de páginas do início de um livro coalhado de teorias sobre a linguagem, de passos descoordenados na fila do tristonho serviço de servir refeições no bandejão, de uma reflexão sobre o que fazer quando nada mais há o que fazer antes de um teste, de uma dúvida entre garimpar o conteúdo pornográfico da grande rede ou consultar a etimologia de algum lugar-comum, de uma saudade de um bom sexo praticado em recompensa ao ócio de um coração apagadinho, de uma ira tola despertada pela igualmente tola soberba de um cigarro que degrada, de um deleite advindo da prosperidade de uma amizade acidental, de um passeio pelo elevador com o perigo iminente da invasão de uma mente (por que calam? e o que calam?); enfim, o ano durou a eternidade de uma vontade de fugir da eternidade.

De um ano aerado de hiatos e esperas, filtrei que quanto mais pratico o que nasceu e se desenvolve comigo, mais sossego carrego em minhas pretensões. Foi um ano em que mastiguei por demais alguns comportamentos e, por fim, restou a ressaca. Para quem não tem um fígado saudável, qualquer porção de amargo é suplemento para continuar embebido no objetivo de dissolver a realidade.

Esquecendo-se um pouco a racionalidade, abusa-se de palavras pouco frutíferas e muito mais ilustrativas e supérfluas. Bom, fica esse como sendo o saldo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

lusco-fuscO

Fez-se dia à meia-noite, e o bicho que me consumia as víceras foi ladrar em outras selvas, ambientes de cactos, vidas severas, céu de azul estalando. Nem despediu-se, tendo o vento sido arrasador, de animar janelas, de anunciar tempestades.

- Pra quê? Pra que, Tufão, surpreender minhas vestes bem engomadas, de cores rupestres e embotadas de ânsia?

- Pra que, se o bicho nem era desta natureza e sim prole de amores interrompidos e áridos?

- Pra que, se o oceano de folhas secas e seixos soçobravam em ondas regulares, nanometricamente senoidais, encharcado de mal-me-queres?

Foi engano teu, Açoite, imaginar que me faria vacilante, que me forjaria em cal tenaz e involutiva, minando assim o meu caráter de encadeamento com outras criaturas. Já tu me sopravas cascalhos moídos em meus olhos lacrimosos; e era tudo turvo, em tudo uma carga de sombra, nada reluzia, pronto a me esculpir artificialmente inóspito e infértil. Inda mais surpreendente foi a anunciação de uma Figura, cuja silhueta se confundia com a de um portal entre o alumbramento e a indecisão. Não era um heroi, nem criatura fantástica, ou ainda espectro luminoso. Era físico, natural, orgânico; era humano. Em nada denunciava cultivar em si um bicho faminto similar ao meu. Mais parecia solver todo tipo de cólera bestial; por certo, aniquilou o Egoísmo gatuno em sua fuga...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

a estadia do afagO


Tendo se antecipado aos sentimentos do mundo - inclusas as dores -, veio feito o sereno, como um tecido que abraça a noite, antropófaga. Os seres fervilhavam, aflitos, desdenharam de seu bailado elíptico, acharam tratar-se da paisagem de pavimentos recém-desenhados, tais quais asfaltos amorfos duradouros de um só verão, como abraços de um coração só. A começar pelos olhos, fugiam do breu, envernizados de um branco roubado do seringal dos sonhos dantescos; olhos nada severos, mas resilientes, divergem dos braços voluntariosos, audaciosos de buscarem segredos em minhas vértebras - (ahr!) os teus dedos nada misericordiosos... (ahr!). E no seu ventre se esconde o furor de uma primavera carnavalesca: é festa e o vinho tinge os nossos medos de lilás, ruboriza anjos caídos, desencaminha. Passam-se semanas e o meu sangue ainda tem cheiro das raízes do teu desejo laçadas em meus braços trêmulos. Caem sementes tuas no planalto dos meus pés aquecidos e brotam anéis siderais, mensageiros de um afeto que se desenha avesso à mentira, essa duna movediça. Toma e guarda o meu coração em teu juízo, afeto meu! O meu lar é também teu, e faz de mim a tua morada.
[o pensamento é tão sazonal...]

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

o entregador de cartas


deixou-as cair no asfalto encardido e fervente
fraturou todas elas, desencaminhou-as
perderam-se não só as saudações
perderam-se as dívidas
e todas as confissões figurativas da linguagem para boi dormir...
(é tempo de não mais redigir)


* em honra do amigo-secreto Cizo

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

o silêncio (arnaldo antunes)

antes de existir computador existia tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
luz elétrica tevê computador
batedeira, liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito, esse tambor

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

impressão e expressão *

Os filmes de ficção tentam divertir os mais céticos com cenas em que duas personagens sempre discordam quanto à existência de seres ou atividades extraterrenas. É bem verdade que no filme alguém sempre acaba se dando mal por duvidar dos alertas, notadamente por serem absurdos demais, e os videntes, loucos. Mas o que seria o absurdo? E mais, o que seria a loucura? O que mais enlouquece, o que se vê ou que não se vê?

O que aconteceu com uma garota de Missouri (EUA) me faz acreditar que o que não se vê é bem mais perigoso que o tangível. Megan Meier contactou um perfil virtual, através de um site que funciona como uma rede social virtual, e desenvolveu uma amizade por este perfil chamado Josh. Este, durante mais de um mês, alimentou a amizade de Megan. Tempo suficiente para fazê-la acreditar que uma palavra amarga poderia estragar tudo, e foi o que ele fez, acabando com a amizade. Ao ser chamada de "cruel" por Josh, a garota de apenas 13 anos enforcou-se. O acordo não era a corda, aquele era virtual, esta não.

Dando o devido desconto pelo fato de que Megan sofria de DDA e depressão, é possível trazer à tona a análise de que há coisas que só tem explicação e confirmação nos próprios mistérios cerebrais. Se somos capazes de amar ou odiar quem nos dirije a palavra, não importando se o que nos separa são centímetros ou quilômetros, não é estranho que todos os sentimentos sejam forjados no calor (ou no frio) dos ventos e das palavras. A cortina que atrapalha a visão que temos uns dos outros é a mesma que se abre para que consigamos alcançar nossas mais egocêntricas aspirações. O referencial para o que chamamos de real ou ilusório é mera jogatina do social.

Lembremos os casos de adoção, de adoração e até os de adultério. Nos primeiros, os elos estão presos pela esperança de que o outro é parte desprendida e perdida do que escolhe: há um pedaço de mim no que a mim naturalmente não pertence. Na adoração, a visão do resto é restrita a um foco: eu preciso acreditar no que acredito porque este é o que melhor me define e me preenche. Já no adultério, é luta vencida tentar explicar ao corpo que ele é o dominado, não o dominador: devo "ser" com alguém, mas não sei nem quem sou nem como serei, e me perco.

Não há loucura maior do que acreditar que a loucura é produto do que está fora. A loucura é fruto da ilusão. A ilusão está no que imagino ver, ouvir, cheirar, gostar, sentir, imaginar. Se meu corpo é o que me identifica, e o que me identifica é repleto de absurdos, o limite entre a expressão e a impressão é também o meu limite. E só eu sei dele. Quem sente pode mentir para o que está fora, mas nunca para si mesmo.

*originalmente publicado em 01/12/07

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

chá verde

põe
sete gotas de poesia
na xícara de chá verde
dos teus dias travosos...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

poeminha ordinário [a prova]

Um textículo para pessoas não-ordinárias que sabem ler, e para as ordinárias que sabem procurar bichos em goiabas. E antes que estas (pessoas, não goiabas) comecem a fazê-lo, precavenho-me dizendo que o poema é pequeno e ordinário mesmo, de modo a não permitir aos censores auto-intitularem-se originais; já vou-lhes pondo as palavras na boca, ao invés de tirá-las.

eu invejo a mulher de boa vida
que derrama sua beleza grosseira e humildemente montada para homens grosseiros e humildemente sinceros consigo mesmos
e invejo igualmente os homens, que se iludem que são retos e se dobram para o que lhe é natural
todos participando do teatro sexual

eu invejo a mulher de salto
que equilibra o mundo nos calcanhares e verte um rio de tristezas, às escondidas
sem saber que mundo é esse, o que dele esperar, nem se as pernas vão agüentar
todas orando para um deus encontrar

eu invejo o homem de terno
que se pendura na modernidade de suas técnicas, e esquece das vigas dos edifícios
e invejo igualmente o seu patrão, a quem, antes disso, não faltavam ofícios
todos bailando no ciclo do quem-é-que-manda

eu invejo o menino no semáforo
que cospe desejos e mastiga o pão que o relógio (Rolex) amassou
e que não teria sido roubado, se fosse de Marcel Marceau
todos bailarinos de máscaras desmascaradamente tristes

eu invejo o crente mais fiel
que, não bastasse o pleonasmo de ser crente e fiel, vive do céu
e não se cansa de traduzir a bíblia para línguas menos más
todos enfileirados desejosos de uma cortesia

eu invejo os escritores de estórias globais
que desprezam as multicores e defendem disputas infernais
porque sabem usar a inteligência para a desgraça da mesma
todos unidos em prol de causas perdidas e vencidas

E não acabo de dizer que invejo todas as criaturas ordinárias, pelo conforto de seus lugares, pela folga de dizer que nada sabem acerca de tudo mais que não lhes diz respeito, e seguem em frente, nunca extraordinariamente. Mas eu não caibo nesse molde, e não sei me confortar com tanta facilidade; o que me é extremamente doloroso, porque sou um homem fraco e deficiente. E tenho medo, principalmente do medo que as pessoas têm.

Talvez até queiram se perguntar onde está, que não se vê!, o poema. Bom, o poema, eu bem disse no começo, é pequeno e ordinário, logo, passa facilmente despercebido; mas as palavras ficam e, com elas, as rimas que não são ricas nem pobres, mas emergentes; ora aqui ora acolá.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

o navio

Nos derradeiros minutos da tarde de hoje, lembrei que um poeta de veia delicada para a música troca sua idade aos 27 deste mês. O encantamento vem de todos os lados pelos quais contemplo a obra deste letrista; por sua naturalidade nordestina, por sua verve africana (de África vigorosamente enunciada), por seu aspecto saudosista ao falar de temas naturais, por sua discrição em sua performance junto à indústria cultural, por seu texto sempre muito intimista e ao mesmo tempo delicado no desdém ao antagonista de seu eu-lírico.
Este autor está presente em mim desde a época da puberdade, cuja inflamação não foi amenizada por qualquer banda de rock, mas pelo batuque do rapaz de aparições rápidas e raras, de voz retumbante e extracontinental. Tem me acompanhado em várias fases, faz lembrar lugares, contextos, persoanagens; é poesia de morder e assoprar...
Foi uma escolha espremida pela vontade de gritar quase todas as letras já desenhadas por ele. Os que mais me agradam são os discos de 1980 e lá vai vinil.
Que fiquem aqui meus sinceros votos de eterna vida à obra deste ilustre artesão, obra temperada de samba a jazz. Entre, mestre, e derrame sua negritude brincalhona...



"Infinito" é a segunda faixa do disco Lilás (1984). Tem por letra a seguinte:
Tô perdido por alguém
Não consigo ver nada além
Do que eu digo nada sei
Compreender o amor
Não é de hoje
Já vai longe
E nem sinal
Hoje
Estou longe
Preso a você
Livre na prisão
Sem castigo
Faz chorar
Distraído rói devagar
É pedindo que Deus dá
Por falar no amor
Acho que vou buscar
Viver por você
Ou me acabar
Quem mandou me acorrentar
Fazer-me refém
Nas grades do amor
Te vejo lá no luar
Te espero lá no sol.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

meandro

Era tudo um descolorido angustiado, quando as sobras das tardes carcomidas ainda cintilavam como um engodo aos pés sedentos de passagens avulsas e desconexas.
Ele se dependurou em um arranjo de tormento, ventilando como um bicho ciente das pernas curtas e da boca imensa, um monumento ao desagrado dos envolvidos e interessados na dança encantada dos dias de azul
desbotado e encardido. Sofria de profunda paixão pelos livros que continham juramentos de um enrosco vacilante, ora suspenso ora entregue aos trabalhos de apanhar a última gota de pressa, deixando-se alimentar pelas calçadas desenhadas por artistas cegos, que evitavam degraus, medrosos de arruinar qualquer possibilidade de hesitação.























Cantarolando despedidas ascéticas, chorou de tanto envergar a alma num apelo ao desvio de destino, conforme fosse a fenda bem feita no limiar do pó do enfado, refratando uma dor que não cabe nos braços, sibilante reza de um corpo ereto, dançante, errante, infante, num instante constante.
Desventurosamente, escorregou o cristalino por entre as vezes em que arranhou a volúpia da conversa de métrica moderna; vomitou, evitou, destoou, alçou vou, imperou e triunfou.
É inválida a tentativa de envernizar o pulso, suspiros disentéricos perduram.


[dedicado ao amigo-secreto Leandro]

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

cal estomacaos

- e então, suas unhas voltaram a crescer?
- parece que não.
- como assim parece? e por que não?
- parece porque não fico contemplando minhas mãos...
[pausa, suspiros e lamento]
- como é? não vai dizer por que não?
- é que os dedos se foram com os anéis.
- sem que você soubesse?
- sim, e todos preocupados com suas digitais.
- verdade, esse mundo tá virado.
- e eu sempre achei que eles estivessem bem.
- mas as unhas saberão manter contato?
- não sei bem, elas tiveram uma relação complicada.
- certamente por causa da internet.
[gozo no diagnóstico precoce]
- bem, se foi isso, espero que mandem email.
- pode ser que elas não lhe tenham excluído do msn.
- sem mais nem menos?
- é, essas coisas acontecem assim...