Sou um homem sem memória, portanto, um homem sem passado. É como se os fatos fossem quadros recém-roubados, nunca recuperados, somente com a idéia primeira despertada pelo contato; de sobra, nem mesmo o trauma da perda, só mesmo a propaganda do roubo. Outrora, valiam um pedaço do céu e uma fração da terra, agora, passou.
Pelas minhas contas, o ano durou bem mais que três centenas e meia de dias, durou a eternidade de uma dor de cabeça crônica, de um esquecer de si admirando uma paisagem desinteressante pelo quadrante da janela do coletivo, de uma viagem entre o veio de páginas do início de um livro coalhado de teorias sobre a linguagem, de passos descoordenados na fila do tristonho serviço de servir refeições no bandejão, de uma reflexão sobre o que fazer quando nada mais há o que fazer antes de um teste, de uma dúvida entre garimpar o conteúdo pornográfico da grande rede ou consultar a etimologia de algum lugar-comum, de uma saudade de um bom sexo praticado em recompensa ao ócio de um coração apagadinho, de uma ira tola despertada pela igualmente tola soberba de um cigarro que degrada, de um deleite advindo da prosperidade de uma amizade acidental, de um passeio pelo elevador com o perigo iminente da invasão de uma mente (por que calam? e o que calam?); enfim, o ano durou a eternidade de uma vontade de fugir da eternidade.
De um ano aerado de hiatos e esperas, filtrei que quanto mais pratico o que nasceu e se desenvolve comigo, mais sossego carrego em minhas pretensões. Foi um ano em que mastiguei por demais alguns comportamentos e, por fim, restou a ressaca. Para quem não tem um fígado saudável, qualquer porção de amargo é suplemento para continuar embebido no objetivo de dissolver a realidade.
Esquecendo-se um pouco a racionalidade, abusa-se de palavras pouco frutíferas e muito mais ilustrativas e supérfluas. Bom, fica esse como sendo o saldo.