quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

o rabo entre as pernaS



Segundo Aristóteles, a comédia é imitação de uma ação possível (que hoje chamaríamos de ação imaginária); juntamente com as outras modalidades literárias, cuida daquilo que não ocorreu de fato mas poderia ter acontecido, estando mais perto das coisas universais, ao contrário da história e das demais ciências humanas, que tratariam do que realmente aconteceu e estão mais presas às coisas particulares. O autor também classificou a comédia como "imitação de homens inferiores... mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo."

Respeitada a indiferença perturbadora de Machado, peço desculpas ao finado pelo simulacro barato e, ao mesmo tempo, promovo a homenagem. Joaquinzim que vá tomar satisfações com o Ari...


A Borboleta Preta (Capítulo 31 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis)

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite; e o gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, uma espécie de ironia mefistofélica, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão - uma das mais profundas que se tem feito desde a invenção das borboletas - me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas". A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e ela beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru.

Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas… Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.


O Labigó Zombador (Capítulo Nenhum - Memórias Postas Debaixo da Blusa - Senhor Beltrano)

No dia seguinte, como eu tivesse a custar-me para sair, entrou no meu banheiro um labigó, tão zombador como o outro, e muito menor do que ele. Lembrou-me o acidente da véspera, e chorei; saí logo a pensar na menina da Dona Raimundinha, nos olhos que pusera, e na graça que, apesar deles, soube provocar. O labigó, depois de escorregar muito fugindo de mim, cagou-me no pé. Xinguei-o, ele foi parar no ralo; e, porque eu o xingasse de novo, pulou dali e veio parar em cima de um velho penico de minha tia. Era acizentado como o dia. A batida louca com que, uma vez besta, começou a sacudir a cabeça, tinha um certo ar infeliz, que me atusigou muito. Dei de sobrancelhas, saí do banheiro; mas voltando lá, segundos depois, e achando-o ainda no mesmo balançar, senti o encher da bexiga, abri mão de um cacete, mijei-o e ele boiou.

Não morreu afogado, ainda balançava a cabeça e esticava as perninhas. Aproximei-me; tomei-o do penico da titia e fui pendurá-lo na chave do basculante. Era tarde; o infeliz perdera o rabo dentro do penico. Fiquei um pouco arrependido, inconformado.

- Também por que diacho não era um rato? disse com o bicho.

E esta provocação - uma das mais corajosas que se tem feito, desde o surgimento dos gatos - me aliviou do prejuízo, e me atrasou no antigo emprego. Deixei-me estar a xingar o recém-anuro, com alguma melodia, confesso. Imaginei que ele fugira do gato, apressado e por um triz. A tarde era quente. Veio para cá para dentro, afobado e besta, esquecendo as suas lagartices, sob o pretexto de uma morte súbita, que é sempre súbita, para todas as garras. Passa pela minha canela, pula e caga em meu dedo. Suponho que nunca teria usado um vaso; não sabia, portanto, o que era o vaso; arranhou redondas vezes as paredes do penico, e viu que estava de pé, que falava, gritava, xingava, ria, um idiota total. Então disse consigo: "Este é provavelmente o dono do gato". A idéia confundiu-o, indignou-o; mas o medo, que era quase instintivo, demonstrou-lhe que a melhor forma de perder o rabo era para o dono da casa, e cagou-me no pé. Quando xingado por mim, foi parar no ralo, viu dali o penico de minha tia, e não é impossível que imaginasse meia felicidade, sem saber, que gostava dali a tia do dono do gato, e saltou para conseguir refúgio.

Pois um golpe de mijada levantou a levedura. Não lhe salvou a cauda solta, nem o frege da cabeça, nem as asas dos insetos de outrora, contra uma mira de olho, dois palmos de distante e um alvo.

Vejam como é bom ser superior aos labigós! Porque, é justo dizê-lo, se ele fosse um rato, ou um preá, não teria mais seguro o rabo; não era impossível que eu o levantasse pela cabeça para recreio do gato. Não era. Esta última idéia entregou-o à maldição; cobri os dedos para não melar, derreei todo o pote e o anuro caiu longe de mim. Era tempo; lá vinham já os promíscuos gatunos... Não, volto à primeira idéia, penso que para ele era melhor ter nascido rato.

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