quinta-feira, 2 de julho de 2009

eu linguajo, você linguaja, eles linguagem

De todas as faculdades características de cada ser humano, a linguagem é uma das únicas que só se completa quando confrontada com o "outro", o que está "fora", o que não é "eu mesmo". Ainda que eu pense que posso interagir comigo mesmo, devo tratar os dois "eus" como agentes diferentes: um que fala e outro que diz de volta, ou outro que somente ouve um falar. Retomando a estória do(s) homem(s), imagino que Deus devia ser um ser que não era, e que nem tinha era, pois a história (ainda que estória) se faz pela ação (ou mudança) e pela sucessão dos homens. Mediante o tédio, Deus soprou vida no homem. Como este falasse quase nada e nem tivesse mesmo do que falar, posto que tudo era paraíso, arrancou do homem um pedaço duro e fez germinar um homem com a parte de cima e sem a parte de baixo, diga-se mulher. Como visto, Deus sozinho não fazia oração, aliás, nem verbo tinha. Mas de nada adiantou montar o par, o homem não tinha roupas a serem passadas, nem a mulher via novelas, e nada era conflito. Foi preciso uma traição e uma cena de nu total para que se fizesse um livro. Vê-se logo que quem não tem com quem falar não se satisfaz, e quem não tem do que falar não faz idéia.


Hjelmslev, lingüista que era da opinião de que a linguagem não se refere ao mundo físico enquanto "coisa" mas sim ao mundo de sentido construído pelo homem, faz a seguinte associação entre sentido e linguagem:


A linguagem - a fala humana - é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam a nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiano aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ela é o tesoura da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento dessas coisas.
(Hjelmslev, 1975: 1-2)

A linguagem é uma obra diária de cada um de nós e somente feita para o conjunto, ainda que não pelo conjunto; mesmo assim com função somente no conjunto. A Lingüística cuida da pesquisa e descrição de muitos fenômenos da linguagem, mas se não há como dar conta de todos os fenômenos, por serem cada vez mais inéditos, tenho para mim que será a um só tempo desesperador e extasiante escolher por qual caminho trilhar, mas nunca inútil e vão.

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