quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

poeminha ordinário [a prova]

Um textículo para pessoas não-ordinárias que sabem ler, e para as ordinárias que sabem procurar bichos em goiabas. E antes que estas (pessoas, não goiabas) comecem a fazê-lo, precavenho-me dizendo que o poema é pequeno e ordinário mesmo, de modo a não permitir aos censores auto-intitularem-se originais; já vou-lhes pondo as palavras na boca, ao invés de tirá-las.

eu invejo a mulher de boa vida
que derrama sua beleza grosseira e humildemente montada para homens grosseiros e humildemente sinceros consigo mesmos
e invejo igualmente os homens, que se iludem que são retos e se dobram para o que lhe é natural
todos participando do teatro sexual

eu invejo a mulher de salto
que equilibra o mundo nos calcanhares e verte um rio de tristezas, às escondidas
sem saber que mundo é esse, o que dele esperar, nem se as pernas vão agüentar
todas orando para um deus encontrar

eu invejo o homem de terno
que se pendura na modernidade de suas técnicas, e esquece das vigas dos edifícios
e invejo igualmente o seu patrão, a quem, antes disso, não faltavam ofícios
todos bailando no ciclo do quem-é-que-manda

eu invejo o menino no semáforo
que cospe desejos e mastiga o pão que o relógio (Rolex) amassou
e que não teria sido roubado, se fosse de Marcel Marceau
todos bailarinos de máscaras desmascaradamente tristes

eu invejo o crente mais fiel
que, não bastasse o pleonasmo de ser crente e fiel, vive do céu
e não se cansa de traduzir a bíblia para línguas menos más
todos enfileirados desejosos de uma cortesia

eu invejo os escritores de estórias globais
que desprezam as multicores e defendem disputas infernais
porque sabem usar a inteligência para a desgraça da mesma
todos unidos em prol de causas perdidas e vencidas

E não acabo de dizer que invejo todas as criaturas ordinárias, pelo conforto de seus lugares, pela folga de dizer que nada sabem acerca de tudo mais que não lhes diz respeito, e seguem em frente, nunca extraordinariamente. Mas eu não caibo nesse molde, e não sei me confortar com tanta facilidade; o que me é extremamente doloroso, porque sou um homem fraco e deficiente. E tenho medo, principalmente do medo que as pessoas têm.

Talvez até queiram se perguntar onde está, que não se vê!, o poema. Bom, o poema, eu bem disse no começo, é pequeno e ordinário, logo, passa facilmente despercebido; mas as palavras ficam e, com elas, as rimas que não são ricas nem pobres, mas emergentes; ora aqui ora acolá.

3 comentários:

Sir Gil disse...

Ordinário quer dizer comum. Destarte que eu "conheça um pouco" o autor dessas linhas tortas, porém virtuosas e cheias de significado, afianço com toda dignidade que me for possível (e que também me é assaz peculiar) que ele está é longe de ser um vivente comum. E o mundo não perdoa com facilidade aqueles que se sobressaem aos mais comuns, mortais ou não!

Bravo disse...

Você é mais ousado linguisticamente que eu, rapaz Giba! Eu fico aqui à-milanesando o vulgo, e nada esperando em troca, exceto a percepção de que pouco me escapa à análise poética. Mas continuo avesso às estórias globais... hahahahaha
Cheiro!

Leandro Antonio disse...

Não invejo o seres ordinários, hora ou outra percebo-me em cima do salto, no semáforo, de terno ou caricatura global e é este isto que faz com que eu seja título criatura pós-moderna.

Abraço, Bravo!